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Reforma tributária e realidade: o impacto sobre o setor de reciclagem

Brasília, 27 de novembro de 2023

 

“As lembranças verdadeiras pareciam fantasmas enquanto as lembranças falsas eram tão convincentes que substituíam a realidade”.

Gabriel García Márquez, Doze contos peregrinos (1992)

 

Uma das características marcantes do debate em torno da reforma tributária é a presença maciça de discursos e evidências que consideram um mundo perfeito com ausência de fricções econômicas, contrastando com os alertas proferidos por poucas vozes apontando para a ausência de elementos do mundo real nesses cenários hipotéticos. Temos uma reforma defendida por unhas e dentes por economistas e seus modelos cheios de simplificações e vista com muito ceticismo por contadores e juristas, que lidam com a realidade tributária no dia a dia.

 

Esse excesso de simplificação, aliado à complexidade do tema resulta no negligenciamento de importantes impactos dessa reforma. Vejamos um deles: apesar de se apresentar como uma reforma incentivadora da agenda verde, ela acaba punindo setores que contribuem para a agenda ambiental.

 

É de conhecimento geral que, com pouco mais de uma década de criação, a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) segue ensejando avaliações diversas relacionadas à sua efetividade. Desenhada para disciplinar o manejo dos resíduos sólidos, produzindo efeitos ambientais, sociais e econômicos, o PNRS continua a constituir um regramento bem-intencionado, mas com resultados pouco satisfatórios em várias dimensões.

 

Um levantamento da Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe), pode corroborar essa afirmação. De acordo com a associação, em 2010, ano da criação do PNRS, o Brasil aproveitava 4% do lixo reciclável. Nos dias atuais esse percentual ainda não conseguiu atingir os 6%. Tamanha lentidão contrasta com as boas práticas internacionais. A Espanha, por exemplo, reciclava apenas 5% de seus resíduos em 1998, ano da implantação do Plano Nacional de Resíduos Urbanos, o equivalente ao PNRS brasileiro. Dois anos depois esse percentual passou para 34%. Nos dias atuais, a Espanha apresenta uma das maiores taxas de reciclagem da Europa, com um patamar próximo a 80%. A diferença fundamental entre as estratégias brasileira e espanhola é que o país Ibérico alinhou o seu Plano Nacional de Resíduos com os incentivos econômicos e governamentais, inclusive a partir de um tratamento tributário diferenciado para o setor.

 

Enquanto isso, os agentes de reciclagem brasileiros atuam no limiar da viabilidade econômica do setor. Cooperativas de catadores não têm acesso à política de desoneração da folha de pagamentos e; com isso, dada a característica dos trabalhadores do setor (e.g., baixa qualificação), muitas optam por atuar na informalidade. O restante da cadeia, em particular os recicladores, não possuem um tratamento tributário adequado, fazendo com que o custo da logística reversa seja extremamente elevado, recaindo sobre o consumidor final. Nesse ponto, é preciso relembrar: a estratégia de preservação do meio ambiente precisa ser ancorada em incentivos econômicos claros e não apenas em obrigações legais.

 

Adiciona-se a esse mercado a característica dos trabalhadores. De acordo com o censo demográfico de 2010, o Brasil conta com cerca de 782 mil pessoas trabalhando ou ligadas às famílias do setor de coleta de recicláveis, grande parte deles sem alfabetização (20%), número bem superior à taxa de analfabetismo registrada para o restante da população (6%). A informalidade também é uma característica relevante, atingindo 51% desses trabalhadores.

 

Composto majoritariamente por mulheres (cerca de 70%), o trabalho de coleta de recicláveis propicia uma renda familiar média baixa, em torno de R$930 mensais. Ao não considerar a reciclagem na categoria de setores da alíquota reduzida, o texto atual da Reforma Tributária aumentará a carga de tributos para os recicladores em mais de 200% na alíquota efetiva. Ou seja, a reforma assume o protagonismo ESG apenas na intenção. Na pratica ele pune quem, de fato, promove o equilíbrio ambiental, prejudicando uma parcela expressiva de trabalhadores com baixa qualificação e renda. Quase 500 mil mulheres ligadas à cooperativas de reciclagem serão fortemente prejudicadas pela reforma.

 

 

 

 

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